SOBRE FOME, EMPATIA E ¿VIRTUALIDADE?

Por Gustavo Gómez Muñoz

Neste escrito, pretendo registrar algumas de minhas experiências durante o semestre de intercâmbio acadêmico que fiz na Universidade Federal do Rio de Janeiro entre fevereiro e agosto de 2022. Para isso, escrevo desde um (meu) ponto de vista subjetivo e anedótico, mas no enquadramento de dados oficiais e catalogação com sintomas que se percebem nas manifestações criativas de quatro artistas brasileiros (e um laboratório de ideas institucional internacional) e que coincidem com e no momento e sentimento histórico que seu país (e a região) estão caminhando através e com o uso e desvio de diversos meios tecnológicos de seu projeto industrial (1). Isso, também com a intenção de deixar em aberto a questão: Arte, ciência, filosofia e tecnologia, para quê? Para continuar a construção do mundo que conhecemos ou construir outro(s) mundo(s)? E deixo, também, a provocação de que, para mim, é impossível virtualizar a realidade porque a realidade não é uma simulação ou uma aparência da qual se pode escapar, mas é a história de todas as relações (incluindo as relações de poder) e já substituiu a utopia. A utopia da que fala Galeano, que serve para não deixar de caminhar, está lá, fora.

Na outra noite, depois de assistir a um festival de harpa e uma exposição de pintura no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro do Rio de Janeiro, com alguns colegas fomos comer alguma coisa. Como era domingo, praticamente tudo estava fechado, resolvemos caminhar (nas palavras deles, algo estranho de se fazer vindo do interior do Rio) até a Lapa, bairro com fama de ser animado e boêmio por seus bares tradicionais, música ao vivo clubes, salões de dança, eventos de samba ao ar livre sob o aqueduto dos Arcos da Lapa, em estilo romano. Não foi a primeira vez que fui à Lapa, aliás, na primeira vez que fui, conheci alguns colegas da turma de Arte, Curadoria e Instituições, com quem, horas antes, conversávamos sobre uma peça de 1987 de Regina Vater exposta no Museu de Arte Moderna intitulada “Para um tempo de guerra” que consiste em uma espiral feita com 233 pedras e 233 pães dispostos no chão que mudam a cada quinze dias e um poema de César Vallejo intitulado “El pan nuestro” e que, segundo Paula Alzugaray na Select Magazine (2), “é uma mandala que inscreve não apenas um discurso pela paz, mas um statement para o presente momento de polarização da política e da sociedade brasileira”. Sobre as pedras e os pães esclarece: “É sobre aqueles que batem e aqueles que alimentam”. Conto isso porque desde aquela primeira vez, até recentemente, na Lapa, sempre alguém me abordava, seja vendendo alguma coisa, pedindo dinheiro ou, no último caso desesperado, pedindo algo para comer. E conto porque parece que a justificativa teórica feita para a peça de Vater reconhece uma polarização política, mas não reconhece a necropolítica que se encontra ali, a cem metros de distância, na periferia do MAM inclusive. Com meus colegas ajudamos como podíamos todas as vezes que íamos à Lapa e eu pessoalmente perdi as contas das vezes que convidei pessoas que moram na rua para comer (e mesmo assim me mandaram a fuder-me e me condenaram ao inferno por negar comida quando não consegui ajudar), mas nossos esforços nunca são suficientes diante da quantidade de pessoas que vêm pedindo ou precisando de algo em um momento histórico em que o Brasil voltou ao mapa da fome da ONU (3). É óbvio que doar todo o pão que se desperdiça com a peça de Vater não acabaria com a fome e a desigualdade no Brasil, mas considero saudável que o ecossistema institucional de arte e cultura faça a constatação de que o museu, e principalmente o MAM, que pode montar uma exposição como “Composições para tempos insurgentes”, tem recursos públicos e privados e pode ativar um componente de mediação cultural para se vincular com a comunidade que vive fora do museu e no entorno, afinal, “a verdade é melhor revelado aos pobres e aqueles que sofrem” (4). Mas desde então, enquanto isso acontece, eu me pergunto, a empatia institucional é possível? E como as instituições são feitas de pessoas, é possível gerar empatia em pessoas que não vivenciaram esta ou aquela situação?

Em 2015, o Laboratório de Ideias do Banco Interamericano de Desenvolvimento lançou Em outros sapatos, uma plataforma virtual que “permite ao usuário se colocar no lugar de outra pessoa que pertence a grupos sociais de indígenas, LGBT, migrantes, afro-descendentes e pessoas com deficiência, a fim de promover a empatia como valor fundamental para garantir a inclusão e o respeito à diversidade. O usuário da Em Outros Sapatos se depara com um ambiente desconhecido onde deve tomar decisões em situações do cotidiano de outra pessoa. As histórias de vida que são apresentadas são baseadas em fatos reais que podem acontecer nas grandes cidades ou, talvez, em um assentamento indígena remoto”, segundo o comunicado (5).
“É um jogo sobre a vida e os sonhos de cinco pessoas reais. Os usuários devem resolver situações e terminar de construir uma história tomando decisões aparentemente simples sobre o cotidiano de pessoas com essas condições. Em Outros Sapatos é uma plataforma virtual para se colocar no lugar do outro”, diz a seção brasileira do blog do BID (6).
São oito histórias no total: de uma mulher indígena da Colômbia, de uma chilena que se identifica como lésbica, de uma equatoriana migrante na Europa, de uma jovem camponesa paraguaia que migra para a cidade, de uma mulher afro-argentina , de um migrante venezuelano indocumentado no Paraguai, uma argentina privada de liberdade e um homem deficiente na Colômbia. Embora a equipe de desenvolvimento interdisciplinar afirme ter conversado com dezenas de jovens na América Latina, os roteiros são relativamente curtos e arquetípicos (às vezes sugerem certas aspirações do establishment), além, a falta de representação da diversidade latino-americana e suas interseccionalidades são notórias, mas, se isso não bastasse, não continuaram acrescentando outras histórias e, embora a ideia tenha potencial, os menos de 16.349 usuários até hoje (7 de julho de 2022) desde o lançamento (menos de sete pessoas por dia) falam por si, mais do que do desinteresse da população em exercer o valor da empatia, dos esforços de divulgação da iniciativa, deixando-me sérias dúvidas sobre se é possível gerar empatia virtualmente a partir de projetos do setor privado. Tudo isso, sem contar que, no caso do Banco Interamericano de Desenvolvimento, é paradoxal que a plataforma não esteja disponível nas versões em inglês e português.

Por outro lado, outra tarde com meus colegas da turma de Arte, Curadoria e Instituições visitamos a VIII Bienal da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro e me deparei com a peça intitulada “Reflexo 2” de Lucas Kateb, egrégora. “Na videoinstalação, um prato de comida transparente contém água e repousa acima de um tablet que projeta imagens de refeições tradicionais brasileiras, normalmente encontradas em anúncios de restaurantes. O artista movimenta a água utilizando uma colher, causando uma distorção das imagens. Os materiais utilizados criam uma experiência de miragem. O prato e o tablet são plataformas para o consumo, enquanto a água e a imagem assumem o papel do produto a ser consumido.
Cada uma dessas duplas semióticas contorce a relação entre matéria virtual e concreta. Dessa forma, os materiais unidos performam a metáfora da fome. Incorporando a ausência da comida física com um equipamento eletrônico, Lucas transforma o contraste entre o avanço tecnológico (como o dos aplicativos de delivery) e a falta de direitos humanos básicos em um vídeo que sonha em ser alquimia. Essa projeção reflete o cenário da fome no Brasil contraposto à virtualização das demandas sociais e a intensificação do consumo de imagens, ambos causados pelo cenário da pandemia de Covid-19.
A refração é um fenômeno ótico que distorce a visão do espectador daquilo que está submerso, alterando a forma de perceber um objeto como ele é. Utilizando-a como procedimento simbólico, o artista deixa explícita a forma como as imagens de propaganda se chocam com a realidade das mesas de jantar. Uma campanha de aplicativo de delivery diz menos ‘ai, a geladeira tá vazia’ e mais ‘oba, saiu para entrega!’. Lucas, ritualística e simbolicamente, preenche um vazio e transforma fome em matéria, questionando toda a noção de consumo da sociedade contemporânea. Toda matéria é feita de átomos, mas não se pode alimentar de uma imagem”, escreve Mariane Germano no texto que acompanha a foto da peça no catálogo da Bienal (7).

Cortesía do artista

A questão da fome não se restringe às pessoas que vivem e andam pelas ruas da Lapa, mas muita gente no Brasil não quer saber que um de cada três brasileiros está em insegurança alimentar (8) (não esqueço quando me obrigaram a baixar de um Uber em Florianópolis por falar disso), talvez porque não queiram saber se podem fazer algo a respeito, talvez, segundo eles, a desigualdade social, a falta de solidaridade e o desdem sejam normais, não são problemas deles e, portanto, não tem que fazer nada; ou, talvez, não queiram saber porque têm sua própria fome que os dessensibiliza: aquela que procuram saciar com aquela objetividade racional que mata qualquer possibilidade poética ou posando no Instagram ou com o jogo do bicho e as apostas em torno do futebol ou, na pior das hipóteses, com uma narrativa identitária fascista para a qual as favelas, a fome ou mais de 600 mil mortes pelo coronavírus fazem parte da paisagem brasileira, como parece denunciar essa videoperformance silenciosa, em preto e branco, intitulada “Crise de Identidade” de Bruno Oliveira do curso de Mediação Cultural , Artes e Letras da Universidade Federal da Integração Latino-Americana que, vestindo a camisa do time pentacampeão do mundo, vive a paixão, a morte e a ressurreição do futebol diante de uma tela e no meio das quatro paredes de um quarto que testemunha como sua paixão cegante o leva a se tornar um militante nacionalista que marcha até no confinamento, acaba transformando sua camisola em uma camisa de força e o corpo inserido nela em uma besta. Um vídeo-performance que seria muito interessante de ver interrompendo a programação habitual da televisão brasileira.

“O autoritarismo procura signos heroicos ultrajantes. Entre as guerras de narrativas midiáticas e a peste avassaladora, cresce a fome e a morte das democracias. Imerso nas redes sociais, dos blogueiros que vendem vida saudável com produtos questionáveis, dos youtubers marombeiros com esteroides ou das dancinhas alienantes, o espectador é transformado em ser abjeto e sem senso crítico. Como não se sentir desencantado diante desse panorama?”, escreve Lucas Almeida de Melo sobre “A liberdade guiando o povo”, fotografia tirada com microscópio digital por Lucas Gibson, também presente na VIII Bienal da EBA UFRJ (9) e continua, “A obra apresentada remete aos memes viralizados e é constituída por um fragmento de uma figura alegórica que representa a república brasileira em cédulas há mais de meio século. Nos alerta sobre aquilo que não enxergamos: os códigos eclipsados pelas imagens corriqueiras, pelas narrativas falaciosas e pelo abuso de poder. O barrete frígio é um adorno, símbolo da república e do estado democrático de direito. O olhar desiludido de Marianne parece indicar sua frustração diante do uso indiscriminado de sua imagem. A personificação da república no papel moeda é uma promessa de liberdade, fraternidade e igualdade ou uma mera apropriação pelo discurso burguês?
As elites brasileiras, herdeiras de um sistema escravocrata, continuam seduzidas pela cultura europeia e por seus mitos clássicos. O desencanto da república, transformado num meme, parece indicar tanto uma síntese da nossa história quanto um sintoma desta gripezinha que enfrentamos neste momento. O enquadramento claustrofóbico enclausura a figura e cria a sensação de um holofote sobre um rosto desesperado diante um interrogatório truculento. A República teria se transformado numa prisioneira política prestes a ser exilada?”, um questionamento que pode ser extrapolado para o contexto norte-americano onde os Estados Unidos aguardam a entrega do fundador do Wikileaks, Julian Assange, pelo governo britânico enquanto o presidente do México diz em seu discurso que, se Assange for condenado à morte na prisão por a informação que ele publicou, a estátua da liberdade em Nova York deveria ser desmantelada (10).

REFERÊNCIAS

1) MACHADO, Arlindo. Arte e Mídia: aproximações e distinções.

Forum: Interação. Metalinguagem. Interpretação. São Paulo, 2002.

2) ALZUGARAY, Paula. Para um tempo de guerra. Revista Select, n. 41, 2019. Disponível em: https://www.select.art.br/para-um-tempo-de-guerra/ Acesso em: 19 jul 2022.

3) PATRIOLINO, Luana. De volta ao Mapa da Fome, Brasil tem 60 mi de pessoas com insegurança alimentar. Correio Braziliense, 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/07/5020611-pais-esta-de-volta-ao-mapa-da-fome-da-onu.html Acesso em: 19 jul 2022.

4) MONSIVÁIS, Carlos. De los intelectuales en América Latina.

Ediciones Universidad de Salamanca. España. 2007.

5) BID lanza EnOtrosZapatos.org, una experiencia virtual de inclusión social, 2015. Disponível em: https://www.iadb.org/es/noticias/comunicados-de-prensa/2015-07-16/nuevo-juego-interactivo-sobre-exclusion-social%2C11211.html Acesso em: 19 jul 2022.

6) RODRÍGUEZ, Yadira. Em Outros Sapatos (En Otros Zapatos; EOZ) – Uma experiência virtual, 2015. Disponível em: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/em-outros-sapatos-en-otros-zapatos-eoz-uma-experiencia-virtual/ Acesso em: 19 jul 2022

7) VIII Bienal da EBA – Catálogo Geral. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://bienal.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2021/11/bienal-eba-catalogo.pdf Acesso em: 19 jul 2022

8) PATRIOLINO, Luana. De volta ao Mapa da Fome, Brasil tem 60 mi de pessoas com insegurança alimentar. Correio Braziliense, 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/07/5020611-pais-esta-de-volta-ao-mapa-da-fome-da-onu.html Acesso em: 19 jul 2022.

9) VIII Bienal da EBA – Catálogo Geral. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2022. Disponível em: https://bienal.eba.ufrj.br/wp-content/uploads/2021/11/bienal-eba-catalogo.pdf Acesso em: 19 jul 2022

10) CNN en Español. AMLO defiende a Assange: Si lo condenan, deberían quitar la Estatua de la Libertad, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lg7gUwCtiz8 Acesso em: 19 jul 2022

Deixe um comentário